segunda-feira, 15 de julho de 2013

Está a guieira na serra

Geralmente era ao jantar. Entre uma garfada e outra, alguém anunciava "hum! Está a guieira na serra..." E eu descolava os olhos da televisão para constatar com tristeza aquilo que costumava significar fim dos banhos. 

A guieira é um vento brando e frio (dicionário Priberam da língua portuguesa, versão on-line para não dar muito trabalho a ir à prateleira). Estava na serra porque a acompanhava uma névoa esbranquiçada que se aconchegava no seu topo e que eu podia observar do meu lugar à mesa. Vinha visitar-nos todos os Verões, mais ou menos a meio de Agosto, e implicava uma interrupção de banhos por dois ou três dias. A minha mãe achava que estava frio demais para se andar na ribeira e eu obedecia, porque era suposto, por mais triste que ficasse. Naquele tempo a água da ribeira ainda nunca estava fria para mim e o reumático anunciado parecia-me coisa longínqua e com possibilidades de não se concretizar.

Há tempos fugiram-me da boca as mesmas palavras, "está a guieira na serra". E fugiu um sorriso logo a seguir, quando percebi. Os olhos dos meus filhos brilharam com a curiosidade da palavra estranha e apresentei-os à névoa, que pairava ao pé da nossa casa, linda porque era Inverno... cinquenta perguntas depois, daquelas a que não sei responder, concordámos que era o tempo ideal para as histórias de fadas e reis, na altura em que o mistério está no ar e os bons procuram salvar todos, mas ainda não encontraram o caminho. Na Roda Fundeira, escrevi muitas na minha cabeça, e até alguns romances, dependendo da idade... 

Por vezes, a guieira era seguida pelo orvalho, que me molhava os sapatos de lona e não me deixava dormir a sesta na manta de farrapos "porque esta humidade do chão faz mal aos ossos", dizia a minha avó. Tanto cuidado com eles e não me livrei das suas maleitas...

Era assim. Duma virada, perdia banhos e sonos. Daqueles embalados pelos ramos dos pinheiros e picados por uma ou outra caruma que a brisa nos aponta. Num ano descobri que o beiral da janela do meu quarto era largo o suficiente para me acolher a ler "Os Cinco" e até apreciei aquela mudança de ritmo. A Isabel Allende também o conheceu bem e as Brumas de Avalon têm outra magia com a guieira na serra. Para recolher palha centeia ninguém contava comigo e enquanto não se lembravam que já era tempo de plantar a couve troncha (trochuda, parecida com a portuguesa), estava tudo melhor. É que depois de abertas as hostilidades, não se parava mais nas sementeiras...

De vez em quando encontro-me velha. Porque gosto de ficar no parapeito da minha janela, ou no degrau cimeiro da casita, a olhar para a serra e a lembrar-me da aldeia quando era viva. O ar era diferente, o cheiro era mais... era mais. Corria uma brisa ao fim da tarde que acalmava o calor dos não-banhistas e iniciava os preparativos para o jantar. O Ti Serafim, o Ti Salvador e às vezes o meu tio Armando eram anunciados pelos chocalhos dos respectivos rebanhos. Há trinta anos atrás, iria correr para a estrada à procura da Violeta do Ti Serafim por entre o pó levantado. Ou iria correr da estrada, a fugir do Anacleto do Ti Salvador, sempre com ar de mau e ladrar de cão que se faz 10 vezes maior do que é. Uma ou duas horas depois, possivelmente quando já estivesse a jantar, veria passar o Morgado com o seu gado e um molho de mato que o vergava até aos pés. As galinhas cantavam no coro das Avé Marias para se recolherem. E despedia-me da Queta, também ela na janela que o meu avô tinha feito na porta do curral. Todos os dias era assim no Verão. Mesmo com a guieira na serra e o orvalho nos campos. E eu adorava. 

Um abraço.

PS - No seguimento de um comentário deixado no facebook por um amigo daquelas zonas, e porque tocou na dúvida que tive ao escrever este post,  resolvi acrescentar-lhe valor.

Quem lá cresceu, ou quem respirou realmente o nosso ar serrano, sabe bem que não dizemos "está a guieira na serra" mas sim "está águieira na serra!"... O ritmo das gentes, a cadência no falar, junta as palavras e atalha caminho por entre as regras do português para criar palavras locais que não vêm nos dicionários... fica o "acrescento" e o agradecimento ao José Baeta por ter ajudado a decidir-me a acrescentá-lo! Assim guardamos a versão ortograficamente correcta e a versão do falar da nossa terra...

2 comentários:

Unknown disse...

Uma linda crónica das nossas terras. Leva-nos a recuar aos tempos da nossa infância obrigada.
A.Carlos

Cristina Coelho disse...

Olá, António Carlos Antunes!
Obrigada! O nosso grande objectivo com este blog é tentar preservar o conhecimento de tradições, palavras, costumes, dizeres, práticas da nossa bela terra e que correm o risco de ser levado na memória dos que se vão... Por isso, agradecemos o excelente elogio!
Continue a passar por cá e a ler!
Um abraço.