terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Mais um que recebeu a carta de chamada.

Mais um que recebeu a carta de chamada.
Era assim que o meu avô António costumava comunicar aos meus pais a morte de alguém. Fazia-o com um aperto de lábios no acabar das palavras, com uma sombra nos olhos das lágrimas que o homem nele não deixava cair. E o movimento da casa parava, para o ouvir. O silêncio sustinha-se no ar enquanto as palavras o atravessavam e as pessoas ficavam mais pesadas por segundos. 

Então?! perguntava o meu pai. E o meu avô desembaraçava as palavras das emoções para lhe contar o como, quando e por vezes também o quem, nas redes de parentes cruzados com nomes de terras e profissões que nos estão no sangue.

E a vida continuava. 
Lembro-me de anos em que se explicaram demasiados nomes. Outros houve em que se estenderam demasiadas bandeiras sobre madeira escura trabalhada. Em que muitas lágrimas se juntaram num gemido comum às outras tantas que se engoliram por vergonha e dever. As despedidas vinham em ondas, como antes haviam vindo as felicitações e os cuidados com as mães. Se houvesse espaço para esses.

Nesses anos, o medo disfarçado de riso saía do meu avô na forma de É pá, se andarem a distribuir as cartas lá pela serra, tu não aceites nenhuma! quando o meu pai ia ao café nas Cabeçadas. A piada partilhada estabelecia entre os dois (e os restantes que os ouviam) o entendimento de homens que se vêm a envelhecer. As mulheres da casa amparavam a conversa com o seu sorriso e os olhares cúmplices trocados, no respeito pelo espaço deles e haveria de acontecer uma refeição em que se contavam histórias de aflição ou malandragem sobre quem fora chamado. Nunca o perdão fácil e completo, mas antes a justiça de vários olhares sobre uma mesma vida. Todos teriam algo de bom e de mau para lembrar, cabia-nos encontrá-lo. Para que continuassem pessoas, não deuses, e pudessem manter-se connosco mesmo partindo. 

Do meu canto da mesa, procurava deixá-los esquecidos de mim na esperança de algum pormenor mais picante, daqueles em que as frases deixam de fazer sentido cortadas pelas gargalhadas e pela falta de conhecimento de quem ainda está a crescer. Os olhos no Sport Billy e os ouvidos à pesca das cores do mundo deles que também queria meu. E a vida continuava.

Cresci a respeitar os funerais como tributos a quem vai e a quem fica, a vê-los como uma parte da vida. Cresci a perceber que as lágrimas não medem a dor ou a falta honesta e que o vazio custa menos se nos despedirmos. E menos se encerrar nele a justiça duma velhice conquistada e saboreada. Enrugada. Despida de pressas de quem já não precisa de chegar a lado algum. Mas os funerais das nossas terras são cada vez mais pequenos e mais próximos. A cada nova vaga, encurta-se a distância para as cartas de chamada que não quero ver receber. Porque todos percebemos que a hora se vai aproximando, embora possa ainda estar a décadas. Mas são os lábios dos meus pais que se apertam agora...

E a vida continua. Como sempre. Para os que ficam. Com os que ficam. Pela minha vida passaram muitos que nunca conheci, de um tempo que não era o meu, que me ensinaram olhares que não teria se os tivessem deixado partir completamente. Se os tivessem esquecido. E agradeço aos que os lembraram, completos de bom e mau. Quero o mesmo para os meus. Mesmo que não possam ver o azul brilhante de água dos olhos do meu avô António, podem saber que era ele que não queria a carta de chamada. Porque gostava demasiado de viver...

Um abraço.
PS - Soube ontem, ao falar com a minha mãe, que o Necas da Roda Cimeira lia o Blog dos Amigos da Roda Fundeira. Um abraço especial à família dele da filha da Adelaide da Munha e do Adelino dos Brasileiros. Porque os meus pais souberam ontem às cinco da tarde que o Necas não voltaria a buzinar da estrada e a parar lá à porta para dois dedos de boa conversa, só porque é o que se faz na nossa terra. E sentiram a falta dele.