quinta-feira, 7 de março de 2013

O exame da 3ª classe

A minha mãe fez o exame da terceira classe em Alvares.
 

Terá falado dos rios de Portugal e seus afluentes, da falange-falanginha-falangeta, ou dos caminhos de ferro de Angola e Moçambique, também ainda território nacional, que teve de decorar na eventualidade de um dia lá se deslocar. Os rapazes seus colegas ainda os veriam destruídos pela Guerra em que também foram envolvidos, mas para ela nunca passaram de nomes ocos de significado.
 
Aprendeu, na escola velha, na Roda Cimeira, ao pé da Venda, com colegas que chegavam a vir dos Amieiros e das Cabeçadas, pelas barrocas cheias de água ou neve ou gelo. Diz hoje que devem ser 2 horas de caminho, mas para pés com seis ou sete anos não levariam tanto tempo. Talvez a neve e a geada ajudassem na descida dos pés calejados, uma vez que não há relatos de grandes esfoladelas.
 
Na escola velha, ao pé da Venda, havia uma casa das batas. O que eu acho giro, porque não consigo imaginar a aldeia invadida por 80 batas, principalmente porque a imagem  mais jovem que tenho das pessoas é por volta dos seus 40 anos.... Mas a minha mãe diz que as batas se sentavam 3 a 3 por carteira, espalhados pela sala de acordo com alturas e, mais importante ainda, pela classe que frequentavam, e no fim do dia ficavam todas penduradas na sala das batas.
 
A professora da 1ª e 2ª classe foi a Zulmira do Nascimento Rodrigues, de São Tomé. Ao que parece, seria boa utilizadora da régua e da cana, trazida pelos próprios alunos do caminho para a escola sob sua encomenda. Penso que tenha sido a esta professoa que o meu tio Carlos, já farto das mãos quentes, tenha prendido a régua no seu vai-e-vem interminável e tenha resolvido testar as suas propriedades aerodinâmicas num voo, pela janela, até ao telhado do Ti Franklim. Um olhar final de estupefação trocado entre os dois terá posto um fim ao episódio, e ele foi-se sentar para ouvir o resto da lição. Alguém terá reposto a falta no dia seguinte, mas parece que a determinação daquele instante o manteve a salvo ppor algumas semanas.
 
A terceira classe terá estado a cargo da professora do Casal Novo, Maria Isabel das Neves. No dia do exame, professora e alunos deslocaram-se em excursão até à Vila. A pé, claro, pois não havia outro transporte conhecido. Ao fim da manhã, comeu-se o almoço orgulhoso, feito e levado pelas mães naquela ocasião solene. Naquele dia, os seus filhos e filhas tornavam-se homens e mulheres sabedores e conquistavam um diploma que atestava o seu bem mais precioso, o saber. Porque naquele tempo, saber era de facto valioso, porque de facto se aprendia e porque isso era algo almejado. Este tesouro poderia ser a diferença entre se manterem na vida difícil do campo ou tentarem a sua sorte na cidade.
 
Começaram-se namoricos na escola. Sem as modernices que os tempos de hoje permitem, mas com a pureza daquelas terras. A forma como ela se mexia dentro do avental de peitilho feito da mais recente chita da venda chamava a atenção dele, e ela espreitava pelo canto do olho como ele fazia as coisas dos rapazes. Os namoros começavam depois, muitos nos bailaricos, onde duas modas dançadas de seguida pelo mesmo par davam azo a libertar as más-línguas.
 
A minha mãe nunca sonhou que casaria com o meu pai. Partilharam a sala de aula quando ela fez a 1ª e a 2ª classe, esta última por duas vezes por escrever Heriques. A professora ainda tentou aquilo que seria hoje chamado de "prova de recuperação": chamou ao quadro a Odete do Fundo do Vale que incluíu o "n" em falta no seu nome nas duas vezes que exemplificou. Mas, incapaz de explicar à professora que não via o que a colega escrevia, a minha mãe manteve o erro nos dois ensaios a que teve direito naquela oportunidade final que a professora lhe deu. E tudo se resolveu com "por muito que goste de ti, Adelaide, não te posso passar para a 3ª classe sem saberes escrever o teu nome como deve de ser". Só no ano seguinte a minha mãe descobriu o que fazia mal.
 
Naquele tempo, um diploma era um diploma e era um acontecimento. Mesmo que se tivesse de suportar, em pleno Junho, um vestido de fioco (espécie de lã), de manga comprida, feito durante a noite anterior. Estavam todos entre iguais, com a mesma dor de barriga e a mesma esperança suada, não pelo andar a pé, pela roupa desajustada ou pelos sapatos inexistentes. Mas pelo caminho feito até ali de esforço de estudar sem condições mínimas para tal. Ou materiais. Ou apoios. Ou compreensão.
 
A minha mãe fez o exame da terceira classe nesta escola, em Alvares. Como todos naquele tempo. E foi aprovada!
 
Um abraço.
 
PS - Caro João Antão, se não quiser que use a sua foto, por favor avise-me que a retirarei de imediato. Mas foi esta foto e os comentários que surgiram à volta dela no facebook que me levaram a finalmente escrever estas histórias. E outras dos próximos post...

12 comentários:

João M Reis Antão disse...

Boa tarde!
Sinto-me duplamente enaltecido por ter partilhado a minha foto.
Sem duvida que a antiga escola de Alvares e uma matriz para três ou quatro gerações dos que viveram na freguesia de Alvares.
Obrigado por mais um excelente trabalho de escrita e tanbem por 'tocar' de uma forma tão subtil os nossos corações.
Saudações amigas do João M Reis Antão

Unknown disse...

Olá Companheiros,

Apreciei muito o retato produzido sobre a vida juvenil e estudantil dos alvarenses e em particular dos rodafundenses. Muito mais há para relevar e revelar, por enquanto, guardado e ocultado,outros já perdidos. Por exemplo,...sabem as origens do professora referida - !!?? As Rodas tem muito que se lhe diga. A continuar...

Alberto Manuel Henriques Barata disse...

A realidade espelhada no sobredito texto, não era só apanágio dos Alvarenses....., era sim comum a todos os jovens da Beira Serra daquela época! Quanto aos rios de Angola e das outras então provincias ultramarinas, ainda me serviu para alguma coisa, quando no cumprimento da comissão militar em Angola, comecei a percorrer as picadas de Nambuangongo e não só. Quanto à dureza da vida daqueles tempos e no que toca à minha pessoa, quando frequentava a 4ª classe na escola da Cerdeira - Góis, a partir do mês de Maio, antes de ir para a escola, tinha que roçar um molho de mato, apascentar o gado, cabras e ovelhas! Outros tempos em que não existia défice nas contas públicas, mas sim muita miséra!

Cristina Coelho disse...

Olá a todos! E muito agradecemos os vossos comentários!!!

Para quem vivia em regiões mais rurais, as dificuldades eram semelhantes pelo nosso país: o trabalho de sol a sol, desde tenra idade, com situações de grave carência económica generalizadas como padrão e casos de miséria que eram os então considerados "pobres"... Aflige-me muitas vezes a recência destas vidas (foi há 50 anos, não 500!!!) e a diferença de expectativas e daquilo que é tomado como garantido entre duas ou três gerações, mudando consideravelmente o nosso olhar sobre a sociedade. É bom olhar para trás para se pensar melhor o caminho que se quer percorrer...
Da professora Zulmira só sei que era de São Tomé, foi o que a minha mãe guardou. Mas gostaria muito de saber mais...
Um abraço!

Anónimo disse...

Cristina Coelho, não conheço Alvares nem a história da vida estudantil da tua mãe, mas ao ler o teu texto... por momentos estive naquela época e naquela sala de aula! Gostei das tuas palavras... e essas histórias de tempos vividos pela tua mãe são tesouros!!! A forma como escreves permite-nos conhecer Alvares Pensar Freguesia! Muitos Parabéns!!! A tua terra deve ter muito orgulho deste "fruto"... a tua escrita com as memórias dos teus!! Beijinhos, Cristina Nascimento

Cristina Coelho disse...

Obrigada, Cristina Nascimento!
A freguesia de Alvares ( e toda aquela região) tem aldeias lindas como a minha, Roda Fundeira, em que tive o privilégio de poder crescer ao ritmo das férias escolares. Os meus (pais, tios, avós...) foram-me transmitindo estes tesouros nos serões à lareira, almoços de família, convívios, dias de festa ou no simples dia-a-dia. De vez em quando consigo organizar umas ideias e deixo-as por aqui, na esperança que perdurem por mais algum tempo e que não desapareçam com aqueles que os anos vão levando...

Unknown disse...

Olá a Todos!

Estimados Amigos.
Primeiro, muito gostaria de saber mais sobre o Alberto Manuel e tentar compreender se existe ligação aos nossos apelidos comuns e manifestar e reconhecer os verdadeiros e dignos relatos expressos neste sítio.
Alguns, provavelmente sabem que fiz investigação sobre coisas antigas da "Região de Alvares", nomeadamente, com publicação de alguns artigos no Jornal de Arganil.
Bem, criei expectativas e agora terei de levantar o véu. As povoações das "Roda" - Cimeira e Fundeira - não é por mero acaso que têm esse nome, até pelo simbolismo que a roda significa, com forte veneração e invocação, bem perto da nossa região,além do facto de uma e outra se encontrarem seja na margem direita e na esquerda da Ribeira do Sinhel.
Muito há para falar sobre isto, mas, no contexto vertente não vou por aí agora. Qualquer dia podemos falar, se houver interesse e interessados, pois são temas para os quais nem todos estão despertos.
Para atalhar, vou revelar em primeira mão (já me havia imposto, em tempo, não revelar meus conhecimentos, pois fui plagiado por pessoa muito conhecida a quem pessoalmente havia revelado em confidência algumas descobertas e que depois usou como se tivesse sido de sua lavra, autêntico roubo intelectual) que uma filha do Buiça - precisamente um dos autores do morticínio do Rei D. Carlos I e do funeral da Monarquia e consequente implantação da República - terá sido escondida na nossa zona para evitar ser morta. Ao tempo, quando ela era criança a zona das "Rodas" era quase inacessível. Atalhando, ela foi depois professora na Roda Cimeira, na antiga escola (hoje casa particular) situada defronte da Capela daquela povoação. Casou com um outro professor primário o Prof Neves que chegou a dar aulas em Alvares e foi o autor do Hino da Vila de Alvares, ainda hoje em uso. Cheguei a conhecê-lo e foi meu convidado no primeiro e único almoço conjunto entre a Com.Melhoramentos de Alvares e a congénere das Cortes, quando eu fui presidente da direcção da primeira e das Cortes era o Eng. Tomé, realizado em S. Sebastião da Pedreira, em Lisboa, nos anos 80, do século passado.. Era muito amigo de meu pai, José Henriques Barata, no passado e há um ano falecido e sócio nº 1 e Fundador da C M de Alvares - Grande Regionalista.
Este espaço não é para me alongar, mas pela primeira vez revelo, como disse, este importante facto histórico, revelador da coragem, ousadia, generosidade e altruísmo das nossas gentes. Mais, tenho suspeitas, não certezas, que os protectores dos descendentes do Buiça seriam provavelmente da Roda Fundeira. Como sabem o Buiça pertencia à Carbonária.
Bem,... muito obrigados pela vossa atenção. À Cristina Coelho, ferverosa regionalista e mulher de grande carísma regionalista, o meu muito obrigado por abordar este tema que me fez levantar um pouco do véu.
Que a Paz vos acompanhe e todos.
GAbço,
Luís Henriques Barata


Unknown disse...

Ao
Alberto Manuel Henriques Barata.
Muito temos de falar.
Não só quanto à mui nobre e digna origem dos nossos apelidos, como também, ao facto de ter cumprido a minha comissão no ultramar, em Angola, 1972/1974, como Alferes Miliciano e Oficial da Polícia Judiciária Militar, no Ambriz (CIIA) Como deve calcular, conheci bem Nambuangongo, Zala, Maria Teresa, todo o Vale do Rio Loge, Ambrizete, Capulo e muitas colunas militares fiz pela estrada do Ambriz até Luanda. Ainda andei pelo Leste (Malange, Cassange e Luso) e no Sul (Silva Porto e Nova Lisboa) e na planalto central (Cuemba, Munhango Nhonga e Bié, onde o Savimbe tinha o Quartel General, General Machado -hoje Camacupa-, além de ter sido o último Cmdte da Reserva de Caça Kissama, onde andei por todo o Rio Kuanza, desde a Foz do Kuanza e Cabo Ledo, ao Sul de Luanda, até à Barragem de Cambamde, no Dondo. Bem e fico por aqui. Quando nos encontrarmos, será meu previlégio recordar esses tempos da nossa juventude. Como deve calcular, muito útil me foi conhecer a realidade das matas da nossa região, onde passave o tempo das minhas férias escolares, no Verão, bem como, o muito que aprendi com a juventude e os antigos da nossa região.
Receba as minhas saudações.
LHB

Alberto Manuel Henriques Barata disse...

Caro Luis Barata,
satisfazendo a sua curiosidade, tenho a dizer-lhe que, o meu saudoso pai era natural dos Amieiros, estando toda a minha família do lado paterno espalhada por toda a freguesia de Alvares, em especial, na Roda Cimeira e Fundeira....A talhe de foice, devo dizer-lhe que tenho vários primos, denominados direitos, na Roda Cimeira, um dos quais, o Jaime Barata, que criou o grupo de concertinas, "Sem Eira nem Beira".
Quanto à minha vivência, ela é igual à de tantos outros jovens da minha geração, trabalhar desde o berço e, quando a então 4ª classe era concluída, rumava-se à cidade, o que, comigo, ocorreu quando tinha 14 anos.
Depois, bem, depois foi o trabalhar e estudar! Trabalhei mais de 40 anos na ESTORIL SOL, tendo trabalhado no hotel com aquele nome e depois, com o avanço dos estudos, fui transferido para o Casino Estoril, do qual a ESTORIL SOL é concessionária, onde me mantive durante 32 anos!
Ao mesmo tempo, exercia, no regime de profissão liberal a Advocacia, o que ainda acontece, tendo escritório e residindo em Cascais.
Pelo meio, além de outras coisas, aconteceu o cumprimento do serviço militar, o qual durou quase 4 anos, tendo, depois de passar por várias unidades na então Metrópole, cumprido a comissão em Angola onde cheguei no dia 23 de Dezembro de 1971 e de onde regressei no dia 24 de Março de 1974.
Em Angola, pertencendo ao BART 3861, estive sediado em Zala durante 13 meses, espaço temporal em que percorri todo o itenerário a partir do Caxito, passando por Quicabo, Balancende, Beira Baixa, Onzo, Nambu, Madureira e finalmente Zala.
Ao mesmo tempo, por vezes, também faziamos colunas a Ambriz, passando pela Baixa das Bananeira,pelo célebre Bico do Pato, Bela Vista, Quimbumbe, percorrendo a coutada do Ambriz.
Na segunda parte da comissão, fomos colocados no Comando Militar de Malange, tendo, em patrulhamento, percorrido todo aquele grande território das Lundas, incluindo a grande Baixa do Kassange.
Chegado aqui, penso, embora de forma sucinta, ter-lhe deixado, a fotografia daquilo que tem sido o meu percurso de vida.
Devo só acrescentar, que sempre me interessei pela coisa do regionalismo, fazendo actualmente parte, da Direcção da Comissão de Melhoramentos do Esporão, aldeia de onde era natural a minha saudosa mãe.
Respeitosamente, aceite as minhas cordiais saudações e até à próxima.
Alberto Barata.

Cristina Coelho disse...

Meus caros...
agradecemos os vossos comentários! É interessante para mim ver o quanto as vidas se cruzam e se assemelham, se trocam e se afastam, tendo nós tudo e nada a ver com o caminho que seguem com as nossas decisões. Gosto de pensar que este post que aqui deixei vos fez reviver lembranças, de que o tempo terá seleccionado as melhores para perdurarem, e, melhor ainda, poderá ter aumentado a possibilidade de se encontrarem e reviverem bons momentos. Já em tempos deixei aqui um "blog de encontro" e já me ri com a possibilidade de poder bisar...

Ao Luís Barata, em particular, agradeço o elogio. Gosto de facto daquelas aldeias (da minha em particular, claro!!!) e gostava muito de saber mais sobre elas. Seria interessante promover umas tertúlias sobre as origens das nossas terras... Como acho que nem todos lêem os comentários, e os dados que deixou no seu são, no mínimo, interessantes, vou fazer um post com eles. Quem sabe mais alguém tem algo a acrescentar...
Cumprimentos,
Cristina Coelho

Unknown disse...

Parabéns pelas belas "cronicas " com que nos vai brindando. Por favor continuo e obrigado.
A.Carlos

Cristina Coelho disse...

Obrigada, António Antunes!
Com estes comentários a acontecerem, a vontade de continuar é mnesmo muita!!!!

Cristina