terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O Pobre de Alveite

"Mas explica-me lá melhor isso do Pobre de Alveite", pedi eu, que não tinha apanhado parte da conversa. "O Pobre de Alveite... ora, o Pobre de Alveite era uma instituição!" concluiu a minha mãe. Com a naturalidade de quem conhece o assunto pela vida. Calei a gargalhada dentro de mim e mantive apenas o ar interessado: "então conta-me lá como funcionava essa instituição..."
 
O Pobre de Alveite era um homem. O seu nome não é lembrado, mas da figura ninguém se esquece. No almoço de família, recordou-se aquela personagem que passou pela Roda Fundeira anos a fio, sem pedir mais do que o que estavam dispostos a dar-lhe. Sem aviso de chegada, ou data de partida, três ou quatro vezes por ano, vinha com um sorriso e dormia onde lhe cediam um tecto.

Sabe-se pouco sobre ele. O que juntava, do que lhe davam, era para consumir ali, junto de quem o apoiava e "não para acumular em sacos como outros que por lá passavam" acrescentou a sogra. Às vezes, tinha para cozer duas chouriças, e dependia da cozinheira a sensatez de recusar a oferta tentadora de um extra para aquela refeição, zelando para que a dádiva fosse mesmo para ele.

Chegou a pernoitar no telheiro da Munha, no forno da ti Olinda da Venda, ou no Valedamego, na casa da Ti Lucinda. Parece que, nos últimos anos, escolhia mais este último porque dormir num quarto era melhor que em cima das capas do milho, ou no mato cortado para ser posto no curral. E ficava o tempo que queria, sem que o mandassem embora. E nem era esperado que fizesse algum trabalho em troca "porque era assim, porque ele não dava para trabalhar".

De onde vinha, se tinha família, se alguém o procurava ou esperava... não me souberam explicar. Não era importante, apenas as histórias que trazia ou que vivia e dava a viver. Sabia o nome de todos da aldeia e explicava bem a quem o queria ouvir o que cada um fazia por ele, ou por quem se cruzava no dia-a-dia. Sabia, e explicava sem pudor e sem pedido, a quem estava para o ouvir, sem censura ou sensatez. Apenas dizia o que havia para ser dito e pronto.

O Pobre de Alveite era, de facto, uma instituição. A aldeia conhecia-o. E a aldeia adoptou-o, ou não haveria o acolhimento fraterno em cada casa, a partilha do pouco que havia (ou não), a disponibilidade para que dormisse sob as mesmas telhas. Da caleira, claro. E ele ficava. E parecia sentir-se bem. Até um dia acordar e seguir viagem para a próxima aldeia que o acolhia. Ao que parece, todos ali à volta conheciam o Pobre de Alveite. E todos, juntos, eram o seu suporte social, num tempo em que não havia Banco Alimentar, IPSS ou subsídios que lhe pudessem valer. A terra, a minha terra (e as restantes à volta), assumiam o cuidado do Pobre de Alveite como se ele fosse seu e devesse ser cuidado na medida das capacidades que tinha, sem medos de castigos supremos ou anseios de recompensas divinas por este acto. E é este cuidar dos nossos que me parece tão natural nas terras, que me orgulha tanto, que é tão imperfeito e tão imprescindível, tão natural e tão em falta hoje. O cuidar porque era isso que se devia fazer. Porque era o Pobre de Alveite e ele era assim.

Um abraço.

2 comentários:

Natália Domingos disse...

LNDO!!!

Mais uma vez fiquei maravilhada com esta bela descrição,de como eram sulidarias as pessoas das nossas aldeias partilhavam o pouco que tinham,de coração aberto,infelizmente agora não se pode confiar em toda a gente que nos pede ajuda,ficamos sempre como se diz por cá,de pé atrás!Bem Haja Cristina.
Beijinhos.

Natalia

Cristina Coelho disse...

Obrigada, Natália!!!

É bem verdade que os tempos mudaram e que agora desconfiamos muito mais. Assim como quem pede, muitas vezes não o faz tão desinteressadamente... o que leva a desacreditarmos no individual e passarmos esta responsabilidade para as instituições e deixarmos de intervir directamente como se fazia nestes anos. Entende-se. Será o ideal? Não sei. Gostava de manter tudo mais pessoal? Possivelmente.

E a Natália lembra-se do Pobre de Alveite? Ou de outros exemplos como este? Partilhe connosco!

Um abraço!