segunda-feira, 22 de julho de 2013

A minha tia Prazeres

Este ano os mordomos são da Munha. Brinquei com pais e tios: "fazem bem assumir esses afazeres, que me deixam a mim livre por mais uns anos". Quando se completar a volta à aldeia, já teremos uma idade mais aceitável para assumir estes cargos importantes. E embora afirmasse o meu tio que já estava na nossa hora, resguardámo-nos neste belo argumento da antiguidade no posto... e resultou!

Ser mordomo é um trabalho e uma honra. Cresci habituada a perguntar quem é o mordomo este ano?, mesmo sem entender muito bem o significado de ser mordomo. Quando finalmente procurei (outra vez o dicionário) descobri que significa literalmente "administrador da casa, do estabelecimento de outro, dos bens da confraria ou irmandade; o que prepara e dirige a festa de uma igreja". Da festa já eu sabia, porque nos anos em que os meus avós da Munha eram mordomos, o Padre chegou a almoçar lá em casa. E, embora noutros anos também o tivesse feito, aqueles eram diferentes. Havia um reboliço maior a que me tentava escapar, quando o mordomo era o meu avô. E era sempre o meu avô, nunca a minha avó. 

De miúda lembro-me também que ser mordomo, em alguns casos, era telefonar de Lisboa à minha tia Prazeres a perguntar se estava tudo pronto na Capela e "vá, então arranja lá tudo, que nós depois estamos aí no dia da festa para o que for preciso". Enquanto esteve solteira, foi ela quem cuidou da Capela ao longo dos anos, uma espécie de "mordoma permanente", em quem se confiava e que assegurava com agrado as tarefas necessárias. Claro que havia uma Comissão de Capela, constituída sempre por três homens, que garantiam que tudo iria ser bem feito. A minha tia ia-lhes explicando o necessário.

Passava as férias na Roda Fundeira. A curiosidade levou-me a acompanhar a minha tia naquele tempo que só muitos anos mais tarde percebi que era o seu tempo, o único que tinha para se voltar para si, para os seus pensamentos. Subíamos os degraus, abríamos a porta principal, ajoelhávamos e benziamo-nos, abríamos a porta da sacristia para circular o ar. Eram verificadas jarras e substituídas flores, confirmada a toalha e os paramentos para a Missa caso fosse de véspera, posicionadas galhetas, cálice e patena sobre uma pequena toalha branca (corporal), para mim, mais um rectângulo de pano, claramente desnecessário. Por último, acendia-se a lamparina, uma taça com azeite e um pavio grosso que parecia não se queimar de um dia para o outro, o que lhe conferia o misticismo necessário para prender a minha atenção. Aos poucos fui conquistando privilégios: abrir a porta, encher jarras, e até acender a lamparina. Algures fiz com a minha tia o pacto de me deixar viver a religião à minha maneira. Assim do mesmo modo que os outros são teimosos, mas nós somos apenas persistentes. As questões mantêm-se, mas já olho para este tempo com outros olhos.

Tocávamos as Trindades e voltávamos, com a sensação do dever cumprido. Depois a minha tia casou-se e renunciou ao cargo, devolvendo a responsabilidade à aldeia. Lembro-me que a Ti Maria das Almas cumpriu o ritual muito tempo, perdoem-me aqueles de quem me esqueço. Ultimamente penso imediatamente no Lomba quando penso na Capela. E na Dona Almerinda, para os cânticos. E na Esmeralda, também. Os restantes diluem-se mais entre todos.

Este ano, a minha tia Prazeres não irá à Roda Fundeira. Talvez seja o primeiro ano em que não passa lá a festa. Despedi-me dela hoje e falámos sobre isto. "És mordoma para o ano que vem", dizia-lhe, tentando tirar-lhe a tristeza dos olhos claros. No seu sorriso, no trejeito de boca que lhe é característico, respondeu-me "pois, já vês filha? Logo este ano... ainda quase lá num fui"... e eu, num impulso "vá, deixa, para o ano também somos todos!", respondi-lhe, invertendo papéis. E depois informei-a que lhe tinha roubado umas fotos antigas e queria usá-las, só não lhe disse para quê. 

Para o ano serão mordomos certamente.

Um abraço.

1 comentário:

Unknown disse...

Retalhos da vida de um que dizem muito a tantos.
Obrigado a "futura Mordoma"

a.carlos