Não me lembro, de entre as muitas que ouvi ao calor da fogueira, de histórias de pessoas a subirem para cadeiras ou mesas com pânico de ratos. Assim como nos filmes, quando se arrancam umas gargalhadas à plateia. Na verdade, era assim desde sempre: todas as casas tinham ratos. E, por isso, todas tinham também gatos para os caçar.
Para além da caça, os gatos sentavam-se ao colo das velhas. Perdão, das cidadãs mais idosas. Das maiores, como agora se diz. (Sobre isso, falarei, mas não agora). Elas sentavam-se à fogueira (lareiras são modernices), quando tentavam aquecer os pés gelados duma vida a regar os campos. Nos banquinhos pequenos que hoje se vendem nas feiras "para enfeitar", como recordação do antigamente. Ou então, em tempos mais idos que já não conheci, no chão feito degrau, que todas as cozinhas tinham e que deixava a lareira num plano mais baixo da restante cozinha - o bordo da lareira. Diz-me a minha mãe que também lá se dormia, de vez em quando, os mais novos ou os mais antigos da casa, se o bordo era largo e o conforto da fogueira ganhava à vontade de um colchão de palha.
Malhado. Pretito. Branquinho. Farrusco. Pintado. E até Tareco. Várias gerações de pedigree selvagem e batismo duvidoso passaram pela terra nas minhas férias. E, claro, Bicho, o nome mais habitual.
Ultimamente, o Ti Salvador abrigava a Bicha Côca que namorou com o meu Chico, gato preto, lisboeta. Coisa fina!!! "Já sabia que tinham chegado, o teu Chico já lá foi à procura da minha bicha Côca! Cabrão do bicho, alembra-se bem quéla lá está!" E o meu Chico - Chico Moisés, como o meu pai gostava de lhe chamar - deixou por lá a sua semente, que ainda este ano me cruzei com um tetraneto seu, focinho e rabo igual ao do antepassado. Só menos marcado das lutas entre bichanos, disputando comer e gatas, por cima dos telhados, com unhadas fundas e uma cantoria inesquecível, própria do ataque. A concorrência será menor agora, com as casas vazias, também de ratos, pelo que as lutas também serão menos frequentes. Mas aquele olhar, aquele olhar era do Chico, do meu Chico.
Ainda me lembro do orgulho que senti quando consegui chamar os gatos lá de casa daquela maneira inconfundível: "Biiiiiiiiiicho, bsbsbsbsbssbsbsbssbsb...". Devia ter dois ou três anos. Cresci nesse dia. E quando passava por um muro destes, passei a tentar convencê-los a aproximarem-se. Que vitória!
Noutros tempos, o Bicho passava os dias enrolado no canto da cozinha, aquele que ele escolhera para seu. E aguardava pacientemente pelo mimo do colo cansado que o acolhia contente, e pela mão retorcida do frio que lhe acariciava o pelo quente do lume. E assim se passavam serões, com conversa ou sem ela, mas acompanhados nos estalidos do lume que quebrava os invernos rigorosos da aldeia.